Desde 2008, uma modificação na lei brasileira considera crime inafiançável invasões a templos e agressões a religiosos de qualquer credo. A pena vai de um a três anos de detenção, sendo julgado em Varas Criminais e não mais nos Juizados Especiais.
Por Vilma Piedad, do #AgoraÉQueSãoElas
Mas, o tempo passa e a lei não se aplica. Amanhã, 17 de setembro, vamos à décima caminhada pela Liberdade Religiosa em Copacabana, Rio de Janeiro. Vamos apelar mais uma vez ao respeito por nossa tradição, à liberdade religiosa! Não queremos tolerância. Queremos garantia de direitos.
A violação de direitos está atingindo, duramente, os Povos Tradicionais de Matriz Africana na Cidade do Rio de Janeiro, em especial as Casas de Axé situadas na Baixada Fluminense. Não é novidade que o fundamentalismo avança a passos largos, galopantes, em todas as instâncias, travando os campos progressistas do fazer político. Mas não estamos falando de qualquer intolerância. De qualquer culto. De qualquer manifestação religiosa. Nossas práticas sagradas tem Cor… é Preta… Preta. Aí… tudo que é Preto é ruim, nefasto, tá lá no dicionário…
A religiosidade de Matriz Africana na diáspora brasileira ressignificou símbolos, territórios. E a África dentro de cada terreiro de Candomblé ordenou a liturgia e resiste até hoje seguindo o caminho deixado por nossos ancestrais. Contudo, enfrentamos hoje, talvez mais do que nunca, o desrespeito à memória de nossa ancestralidade, ao nosso Sagrado. Sagrado fundado pelas Mulheres. Mulheres de Axé. Nossas Matriarcas. Resistência política, religiosa, cultural. As Mulheres de Axé são as pioneiras, fundantes do nosso Sagrado que está sendo depredado!
Não esqueçamos que o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa nasceu por conta da marca criminosa da intolerância, do racismo que vitimou uma Matriarca de Axé:
De acordo com a SEPPIR, o dia 21 de janeiro – Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, instituído pela Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007, rememora o dia do falecimento da Iyalorixá Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum (BA), vítima de intolerância por ser praticante de religião de matriz africana. A sacerdotisa foi acusada de charlatanismo, sua casa atacada e pessoas da comunidade foram agredidas. Mãe Gilda faleceu no dia 21 de janeiro de 2000, vítima de infarto.
O que será que o Feminismo Contemporâneo tem a ver com isso? Tudo a ver. Como vamos conseguir, de fato, construir um Feminismo Dialógico Interseccional se nossa história, nossos valores civilizatórios não forem incorporados nas práticas e ações do Feminismo? Prá ser Dialógico Interseccional, o Feminismo precisa mudar ainda mais a cor, ficar mais preta. São muitos tons de Pretas.
O Feminismo Brasileiro precisa conhecer nossa história. Precisa falar do racismo! A situação das Religiões Afro-Brasileiras é a mais vulnerável frente às violações dos direitos assegurados na Constituição de 1988, que garante a liberdade de crença e culto (artigos 5º e 19º). A maioria dos Terreiros são liderados por Mulheres. E aí? Por uma Democracia Feminista com o toque do tambor…com o girar das nossas saias. Por uma Democracia que inclua todas as Mulheres!
Vamos aos dados :
Os dados demonstram que os adeptos e Terreiros de Religiões de Matriz Africana são a maioria entre os casos denominados de Intolerância Religiosa. Dos 300 casos denunciados ao Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos, 26,19% das vítimas eram candomblecistas e 25,79% eram umbandistas. Segundo dados da Secretaria dos Direitos Humanos (SDH), vinculada ao Ministério da Justiça, entre janeiro e setembro de 2016 (dado mais recente disponível), foram registradas 300 denúncias de Intolerância Religiosa, pelo Disque 100. Na comparação com o mesmo período do ano passado, que teve 146 denúncias, foi registrado um aumento de 105%.
Contudo, os ataques, perseguições, são mais antigas por aqui, do possa parecer. Prá falar disso, como diria Lélia Gonzalez, vamos revisitar um pouco a História…
Registrado pelos estudiosos da História do Brasil, a Quebra de Xangô, ou o Dia do Quebra ou Quebra de 1912, foi um crime hediondo de Intolerância Religiosa (daqui por diante denomino como Racismo Religioso) que aconteceu no dia 1 de fevereiro de 1912 em Maceió, Alagoas.
O ato culminou com a invasão e destruição dos principais Terreiros de Xangô em Maceió. A História cataloga esse terrível episódio como a Quebra de 1912. Todas as Casas de Culto Afro-Brasileiro existentes na região foram destruídas. Terreiros foram invadidos, objetos sagrados retirados e queimados em praça pública. Pais e Mães de Santo foram espancados.
A partir daí, os adeptos, iniciados nas práticas de Culto aos Orixás, criaram o chamado Xangô Rezado Baixo. E parece que estamos caminhando nessa direção. Retrocesso.
No período de 1889-1930 era comum a polícia perseguir os Cultos das Religiões de Matriz Africana, invadindo terreiros e apreendendo objetos sagrados. Apesar da Constituição de 1891 garantir a liberdade de crença e culto, o Código Penal de 1890 criminalizava as Casas Sagradas e tipificava as manifestações, práticas rituais, como curandeirismo, baixo espiritismo , charlatanismo , alegando o exercício ilegal da medicina.
Esse mesmo Código Penal também criminalizava a Capoeira e o Samba. Ou seja, tudo que fosse resultante da Cultura Afro-Brasileira. Aqui, mais uma vez, as Mulheres de Axé, resistiram. No Rio de janeiro, Tia Ciata, é referência na preservação do Samba e dos Rituais .
Já no período da República, o Candomblé foi proibido de exercer as suas atividades e os Terreiros ficaram subjugados à Delegacia de Jogos, Entorpecentes e Lenocínio. Portanto, sempre estivemos à margem e o Estado Brasileiro não coibiu, de forma efetiva, as várias manifestações de Racismo Religioso que ocorreram no País até os dias de hoje.
Não esqueçamos que a Polícia Civil do Rio de Janeiro tem em seu poder, no Museu da Criminologia, mais de 200 peças sagradas da Umbanda e Candomblé, apreendidas desde a Primeira República (1889-1930). Nessa época as Religiões Afro-Brasileiras eram duramente perseguidas e proibidas. Entre 1945 e 1985 o acervo religioso apreendido foi classificado de forma racista, pejorativa como “Coleção de Magia Negra” .
Coleção da Magia Negra. Ora… se tem Magia Negra é porque existe uma Magia Branca. É isso mesmo? Olha aí o racismo linguístico, ideológico alimentando a Branquitude. Branquitude enquanto sistema de opressão e privilégios. Racismo Religioso.
Se a Magia é Branca … é boa. Bendita. Se a Magia é Negra…é ruim. Maldita. Tá tudo na língua que sustenta a linguagem que alimenta e retroalimenta o imaginário social no cotidiano.
Lá se vão 100 anos longos anos e o Estado continua mantendo esse acervo cultural e religioso sobre seu poder. Preso. No extinto Museu de Criminologia. Ainda hoje, existe campanha denominada “Libertem o Nosso sagrado”, para que esses objetos possam ser destinados a outro museu. Com respeito. Reconhecimento. Tradição.
Em 2017, seguem arrebentando os Terreiros de forma violenta. Estão silenciando nosso Sagrado… nosso Saber Ancestral. Há uma cultura criminosa que instaura o ódio religioso se volta, de forma absurda, contra os Terreiros na Cidade do Rio de Janeiro.
Mas, como vimos, a história não aponta novidades nesse processo. O Racismo Religioso vem de longe… acompanha nossos passos desde que nos trouxeram à força prá cá. Somente em 2015 foi criada uma agência especificamente dedicada à Discriminação Religiosa, chamada Assessoria de Diversidade Religiosa e Direitos Humanos.
O Racismo Religioso não nos dá tréguas. E o Feminismo Contemporâneo não pode ser conivente com ele. Por isso precisamos caminhar!
RUMO À MAIS UMA CAMINHADA PELA LIBERDADE RELIGIOSA! AMANHÃ. COPACABANA.
Às 13 hs. Sendo Mulheres de Axé ou Não. Essa luta, essa caminhada é prá todas nós!
*Vilma Piedade é Mulher Preta. Ativista, de Axé. Membra da RENAFRO, integrante da PartidA-RJ, da AMB-Articulação de Mulheres Brasileiras.
Há sete anos, no dia 16 de março, religiosas do Candomblé no Recôncavo baiano criavam o Grupo Mulheres de Axé do Recôncavo, uma inciativa de união e ação em prol de mulheres de terreiros e suas comunidades. O objetivo principal era o acolhimento, o apoio e a formação destas mulheres, tendo em vista sua autonomia. À frente do Grupo está a Iyalaxé do Ilê Axé Obá Lajá, candomblé nagô em Muritiba, Juçara Lopes, que começou o movimento junto a quatro filhas da Casa.
Tudo começou com o projeto o Êre Obá (Crianças do Rei), no qual a ideia era oferecer reforço escolar, aula de capoeira, contação de histórias e toque de atabaques para os filhos das mulheres que tivessem que sair para trabalhar. Mas a demanda cresceu e passou a acolher crianças da comunidade. Já a ideia, chegou a todo território do Recôncavo, constituindo o Grupo que viria a realizar diversas atividades: encontros, feiras empreendedoras e de saúde, homenagens, cursos, audiências públicas – tudo com foco nas vivências das mulheres de Axé e suas necessidades.
“As Agbás (velhas) são nossa memória e biblioteca e repassam esse conhecimento conforme vão vendo, se as mais novas fazem por merecer. E eu acho que fiz, pois desde que as convidei para o grupo, aqui só floresce. Elas trouxeram a voz da experiência e tudo por aqui é referido no feminino porque trata-se de um matriarcado. Me ensinaram que “nossas saias têm poder”. Falam sobre o poder em usá-las, pois muita coisa só se aprende convivendo, ouvindo e fazendo o que elas mais sabem”, diz Juçara.
Com a ascensão do governo Bolsonaro, as mulheres decidiram ampliar o alcance do grupo pelo país, começando então o Mulheres de Axé do Brasil e realizando, em março de 2019, seu primeiro grande encontro, em Cachoeira. “Determinada em manter viva a memória dos ancestrais de Axé do Recôncavo, idealizei o projeto Casa das Mulheres de Axé, local onde se perpetuará saberes e fazeres ancestrais através de cursos de formação, promovendo em nossas mulheres autonomia e sustentabilidade”, conta a Iyalaxé.
Para fixar todo esse movimento, em março deste ano elas criaram a Casa das Mulheres de Axé na cidade de Cachoeira, espaço que abriga o projeto Bordando Ancestralidades, curso de formação em bordado rechilieu e corte costura, além de uma loja de economia solidária para escoamento da produção de empreendedoras negras do movimento e um memorial aos Ancestrais do Recôncavo, com peças, biografias, fotografias, objetos antigos, cozinha e copa para cursos e lazer e a sede administrativa do grupo nacional.
“Somos uma sociedade civil sem fins lucrativos, democrática, pluralista, antirracista e antissexista, que congrega mulheres de povos tradicionais de matrizes africanas e de terreiros dos mais diversos segmentos e estados, que lutam contra todas as formas de preconceitos, discriminações e desigualdades em suas múltiplas dimensões”, diz Juçara.
Hoje, o movimento de Mulheres de Axé do Brasil é uma rede de mulheres das mais diversas religiões de matriz afro-brasileira, tem representantes em outros dois países (Bolívia e Paraguai) e está em 20 estados brasileiros, com núcleos em 16 deles: Bahia, Sergipe, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Maranhão, Amazonas, Distrito Federal, Goiás, Pará, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso, Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo.
Para a Iyalorixá Zelita Alves do Ilê Axé Ioromym, considerada a mais velha dentre as religiosas do grupo, o momento é de união e luta. Precisamos educar nossos jovens, acolher nossas mais velhas e este grupo é isso, ele traz conhecimento sobre o que é ser de Axé, quem são nossos ancestrais, nossos antepassados. Precisamos nos fortalecer ainda mais, pois hoje já somos um grupo que ganhou o Brasil e até outros países. Nós temos herança e não podemos perdê-la, precisamos combater o racismo e a intolerância religiosa, precisamos ter representatividade na política, nos unir, pois somos uma maioria negra em nossa cidade, estado, país. Nunca foi nem é fácil, mas a luta precisa continuar, unidas”, diz Mãe Zelita.
Essa conquista é ponto comum entre as religiosas. “Estamos em fase de organização para assim poder expandir mais e mais. Queremos nossas mulheres ocupando espaços de poder nessa sociedade tão desigual”, conclui Juçara Lopes.
O grupo realiza, anualmente, o Encontro de Religiões Afro Brasileiras do Recôncavo, para propiciar troca de saberes, fazeres, culinárias, empreendedorismo negro e encontro sagrado, com a realização de Xirê em praça pública.
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